Introdução
Nota-se um caminho perigoso sendo seguido por alguns influenciadores e divulgadores do Espiritismo que conquistaram espaço contestando – a princípio, com justiça – os “misticismos” e “aculturações” desviantes do movimento espírita brasileiro.
Revoluções gnoseológicas
Alguns deles resolveram que lhes compete fazer uma “revolução gnoseológica“, como se Kardec tivesse produzido uma literatura hermética que ninguém entendeu, e grandes novidades sofisticadas ou esforços por iniciar “jornadas intelectuais” para ir “além da fé raciocinada” fossem indispensáveis para compreendê-lo devidamente.
Lançamentos editoriais estão sendo propagandeados nas redes sociais sob o envelope do sensacionalismo, anunciando sem pudores que se propõem a realizar uma transformação visceral e fazer, por si sós, o Espiritismo ser entendido “como nunca foi antes”.
Os autores prometem que seus trabalhos têm o condão de resgatar uma teoria espírita soterrada nos escombros do passado e da ignorância. Juram que “redefinirão” a compreensão do Espiritismo, que suas elaborações filosóficas permitirão ao leitor “mergulhar no oceano do conhecimento” e outras grandiloquências.
Sensacionalismo editorial
Outra observação delicada é a de que já se veem alguns que estão se transformando em seus próprios produtos, mercadejando seus próprios nomes e se colocando como os professores que, em matéria de Espiritismo, como diria José Herculano Pires, só os Espíritos superiores podem ser.
Recentemente, deparamos com um curso de “mentoria” de Espiritismo, oferecido a tanto por cabeça, com escolha do tema a ser abordado e dos horários de trabalho, para que o interessado estude com um “especialista” na obra de Kardec que garante ter “competência” para auxiliar o seu “cliente” a usar a moral espírita como ferramenta para se equilibrar emocionalmente e ter uma vida mais feliz (?).
Críticas às pretensões de “revolução”
Àqueles que propagandeiam suas obras ou cursos como se fossem “revoluções” ou reinterpretações viscerais, dispostas a revelar um Kardec que nunca se conheceu, perguntamos se não consideram, sinceramente, que tais postulações amesquinham o nosso mestre francês em vez de enriquecer a compreensão de seu trabalho.
É evidente que o movimento espírita cometeu erros trágicos; é evidente que esteve, por muito tempo, contaminado por lideranças que não estiveram à altura de respeitar seu legado e suas orientações, impondo sobre a doutrina suas preferências pessoais e atavismos.
Clareza das Obras de Kardec
No entanto, ainda que a descoberta de documentos históricos traga informações valiosas, não é possível que acreditemos que as obras fundamentais estejam escritas em linguagem tão misteriosa ou professoral que não esteja ao alcance da inteligência de praticamente nenhum leitor desde o século XIX, o que significaria dizer que Kardec padeceu da incompetência dos prolixos e pedantes, indigna dos Espíritos elevados.
Não; seus livros são escritos com clareza, com simplicidade.
Não há nenhum documento que se possa revelar ou descobrir que vá transformar a reencarnação, a escolha das provas, a caridade, o apelo à crítica racional, a importância da prece e tantos outros princípios espíritas que, apesar dos problemas do movimento social espírita, estão aí, ao nosso alcance, desde que o professor Rivail se dignou de cumprir sua missão na Terra.
O Espiritismo era praticado e experimentado por pessoas simples, por famílias, até por infelizes presidiários em suas celas, conforme registra a Revista Espírita.
Parece-nos que, diante desses fatos, precisamos colocar um tanto mais “os pés no chão”.
A prática mediúnica e a não comercialização
O ideal na prática mediúnica, o Espiritismo deixa claro, é que não seja objeto de comércio, porque não se oferece, através dela, algo que o próprio indivíduo tenha produzido.
O médium serve de intermediário para os conteúdos transmitidos pelos Espíritos.
Contudo, Kardec deixa claro que aquele que labora por si mesmo pode receber retribuição por isso; é evidente que terá Espíritos em seu entorno, como se tem ao exercer qualquer atividade, mas levar tal raciocínio ao extremo significaria condenar qualquer profissão e a subsistência material assentada no mérito.
Não é que nenhum escritor possa cobrar pela venda de seus livros ou que um professor não possa ser remunerado para lecionar.
Allan Kardec sobre a venda de livros
Kardec mesmo afirmou que não poderia simplesmente doar suas obras espíritas, justificando no artigo A Constituição transitória do Espiritismo (Revista Espírita de dezembro de 1868):
“Aos que perguntaram por que vendíamos os nossos livros em vez de dá-los, respondemos que o faríamos, se tivéssemos encontrado impressor que no-los imprimisse de graça, um negociante que fornecesse o papel grátis, livreiros que não exigissem nenhuma comissão para distribuí-los, uma administração dos correios que os transportasse por filantropia etc. Enquanto esperamos, como não temos milhões para cobrir esses encargos, somos obrigados a lhes atribuir um preço”.
Admitiu que uma parte dos recursos obtidos pela venda das publicações era utilizada para fornecer a suplementação de recursos que lhe era necessária aos esforços de instalação do movimento espírita, como os gastos postais e com as suas diversas viagens, tão importantes para que ele estivesse em condições de desempenhar sua tarefa e lhe dar a amplitude necessária naquele momento.
Recursos e administração planejada
Vivemos em um mundo material, em que as ações dependem de recursos materiais. No mesmo referido texto, imaginando um plano de prosseguimento das tarefas espíritas que nunca foi realizado pelos seus sucessores, Kardec concebia a formação de um comitê central de integrantes da Sociedade Parisiense que administraria um museu, uma biblioteca, uma obra assistencial, entre outras estruturas relativamente complexas.
Esse comitê deveria incluir um contador, um arquivista, um secretário, entre outras funções profissionais. Admitiu, na época, que
“as atribuições do comitê central serão bastante numerosas, como podemos ver, por necessitar uma verdadeira administração. Tendo cada membro funções ativas e assíduas, se não nos tornássemos senão homens de boa vontade, os trabalhos poderiam sofrer com isso, porque ninguém teria direito de censurar os negligentes. Para a regularidade dos trabalhos e do expediente, é necessário ter homens com cuja assiduidade se possa contar, e cujas funções não sejam simples atos de complacência. Quanto mais independência eles tiverem por seus recursos pessoais, menos eles ficarão adstritos a ocupações assíduas; se não as tiverem, poderão dar o seu tempo. É preciso, pois, que sejam recompensados, assim como o pessoal administrativo. Com isso a doutrina ganhará em força, estabilidade, pontualidade, ao mesmo tempo que será um meio de prestar serviço a pessoas que dele poderiam ter necessidade”.
O próprio Kardec se isentaria de receber qualquer recurso, e as fontes de rentabilização para sustentar essa estrutura viriam, dentro de seu planejamento (ressalte-se, jamais executado), dos lucros de suas obras e do aporte de valores mobiliários e imobiliários.
Monetização legítima versus mercantilização
Não poderíamos, pois, sentir-nos autorizados a condenar qualquer preocupação de ordem financeira ou de rentabilização para a administração de estruturas de divulgação do Espiritismo.
“Monetizar” um canal do Youtube para financiar a melhoria dos equipamentos para suas atividades, por exemplo, ou colher recursos dos associados ou apoiadores de um centro espírita são meios perfeitamente legítimos de organizar e fortalecer a difusão da doutrina dentro das demandas do mundo contemporâneo.
Humildade de Allan Kardec
Porém, mesmo sendo o sistematizador da doutrina, não é difícil apontar as inúmeras ocasiões em que Kardec, com toda a modéstia possível, se apresentou como alguém a serviço dos Espíritos e de Deus, dando conta de que eles são os diretores e protagonistas da obra, reduzindo tanto quanto podia sua própria importância pessoal.
Fez uso de um pseudônimo, não obstante seu nome tivesse reputação como pedagogo; fosse feita apenas a sua vontade, teria permanecido obscuro como fundador do Espiritismo na Terra.
Seus livros eram objetos materiais, vendidos e gerando recursos para a causa. A causa, porém, não era um produto (tampouco ele próprio como indivíduo).
A mensagem do Espiritismo em si não é objeto de comércio. É uma dádiva divina, da qual somos pequenos demais para nos colocarmos como vendedores experimentados e eruditos. Aí está a diferença. Como não constatar um enorme contraste com as posturas que são assumidas hoje por confrades nossos que parecem julgar que estão com seu pós-doutorado em Espiritismo realizado para comercializar a própria expertise?
Conclusão
Estamos sendo tomados de assalto pela megalomania ególatra. Nossos inimigos se regozijarão disso.
Sobre o Autor
Lucas Berlanza é jornalista, escritor e presidente do Instituto Liberal. Autor de livros como "História Geral do Espiritismo: Resumo Expositivo", "O Espiritismo perante seus inimigos e desafios contemporâneos" e "O Progresso Segundo o Espiritismo"












